3.21.2010

Demologo | O Gigante Agathi

- Tenho que ir.. tenho que ir.. Por que isso, por que!?

Já fazia quatro dias que chovia e Agathi, um jovem gigante sem história e com o provável maior coração do mundo, chorava desesperado ao ver ratazanas gritando e subindo pelas paredes. Começava a enxergar o peso da sua decisão. Não entrar na arca do velho Noé teria seu preço e ele começava a pagar. Não queria entrar de forma alguma na arca sem sua família e sua família, por sua vez, tinha muita sede por caça e por descobertas e não acreditava que passaria tanto tempo com chuva.

A descrença de sua família e a compaixão que Agathi tinha pelos outros teria quer ser paga. Mas Agathi sofria e sofria muito, não por ele e pouco menos por sua família mas por ver animais sofrendo e soltando seus gritos de angustia. Viu a água invadindo toda a sua casa formando um espelho de água barrento e portador de insetos, pequenos animais e galhos de plantas. O vento era forte e os animais, uns com dificuldade, outros não, corriam em meio à chuva e correnteza em busca de abrigo.

Agathi tomou a coragem que só os medrosos têm e se cobriu com uma pele grande de gado que seu pai havia lhe dado. Tinha que acudir sua querida coruja que estava com a asa machucada e não podia voar e fugir da água. Tentou correr empurrando a água que batia já em suas canelas e depois de alguns metros de uma penosa caminhada em meio ao vento e trovões começava a ouvir, ainda que de longe, os gritos dos pequenos (como chamavam os humanos com estatura mais baixa) que clamavam e choravam com medo pelo que poderia ser aquela chuva. Alguns já pegavam suas embarcações e começavam a se retirar com suas famílias. Outros começaram a brigar como animais pela comida que havia nas habitações abandonadas.  Olhar aquilo de longe era assustador, pois se via, com uma contemplação total que poucos teriam, o que aquela chuva estava causando nas pessoas.

Depois de alguns minutos de horror Agathi voltou a si e continuou caminhando com força em direção ao ninho improvisado que havia colocado em alguns galhos de um pinheiro próximo de uma mata que havia na região. Não sabia se chorava ou arquitetava um plano enquanto caminhava, pois a chuva não parava e ele tinha certeza de que tudo que Noé havia falado aconteceria. Seu temor era diferente.. com certeza era diferente dos outros que temiam ao redor. Sua casa, apesar da mínima diferença de terreno, estava na parte mais alta da região. Ver a água ocupando aquele local o fazia crer piamente que a situação ia piorar gradativamente. Apesar de tudo se focava na coruja, pois comida carregava na cintura amarrada em uns trapos como sempre fez. Um frango queimado em fogueira era sua reserva na cintura, então a coruja seria a única coisa que poderia perder naquele momento.

Após sua caminhada chegou até a coruja e ficou feliz em vê-la ainda ali. Tentou pega-la mas recebeu 3 ou 4 picadas na mão, ainda sim insistiu e depois de alguns ferimentos conseguiu agarrar a coruja com quem tanto se preocupou. Ao olhar pra trás percebeu que a água está formando uma espécie de grande poça em seu horizonte, onde estava a sua cidade. Viu que voltar seria arriscado e que seria mais fácil para sua mãe o ver em lugares mais altos e mais próximos da mata que era o local para onde havia ido caçar. E assim o fez.

Começou a subir um monte que havia ali. “Um vale” pesou consigo.. “Minha cidade está no vale”.. Foi aí que percebeu que independente de quanto tempo durasse, a cidade era totalmente vulnerável a chuva. Se sentiu estranho ao dormir, comer e passar dias abraçado com aquela coruja, mas foi isso que ele fez dali em diante. Muitas noites acordava com a água tocando seu rosto e mesmo cansado dos maus repousos levantava e subia muitos metros a fim de se proteger da chuva. Outras noites acordava com animais que buscavam refugio em meios aos campos e montes mais altos. Estava desnorteado, com medo e agora sim pensando em sua mãe e pai. De tanto pensar mais uma vez adormeceu, mas seu despertar foi diferente e mal sabia que seria seu ultimo despertar sob a chuva.

Gritos, pessoas tossindo e outras chorando. Agathi levantou assustado ao ver pessoas surgindo da água.. Algumas agarradas em objetos, outras q boiavam através de corpos de outros humanos. Ver aquilo foi assustador e por alguns segundos pensou estar ainda dormindo. Sem pensar muito abraçou forte a coruja, levantou-se e caminhou em silêncio até a parte mais alta do morro. Havia muitas pedras, entre elas vãos largos, mas graças a sua boa extensão de perna pode dar saltos que poucos daqueles humanos ousariam tentar dar. Conseguiu se encaixar entre um dos vãos na parte mais alta daquele morro e ali sentou. Infelizmente sua vista não era agradável. Se inclinasse seu corpo um pouco pra frente podia ver sua cidade não tão longe já encoberta pela água e pessoas chorando, gritando tentando salvar suas vidas. Ao inclinar seu corpo para frente e um pouco para o lado podia ver as pessoas que estavam onde antes dormia, umas brigando e outras chorando desesperadas.

Agathi estava cansado, com fome e desnorteado. Por mais altos que aqueles pequenos gritassem suas vozes chegavam como se estivessem longe. Ele queria conversar e só havia a coruja ali para consolá-lo. Pensava, ainda que distante, de como tudo aquilo podia estar acontecendo e o que ele havia feito para passar por tudo aquilo. Virou a coruja para si, queria olhá-la nos olhos e quando viu ela estava morta, com a cabeça mole e com o corpo desfalecido. Queria chorar e não tinha forças pra isso, queria fazer algo mas sabia que não podia, então em um ato de respeito e carinho, lentamente foi largando a coruja, de forma que sua mão ia deslizando pelo corpo da pequena ave até que seus dedos segurassem apenas as pontas de cada asa e ao chegar aos extremos a largou deixando-a cair na água que já corria a poucos metros de onde estava. Concentrou-se no movimento das águas e na cor escura que tinha. O céu estava pesado como se tivesse muito ainda a chover e o vento e trovões gritavam como se quisessem rir de Agathi. Agathi, por sua vez, tinha já um olhar fundo, cansado e cheio de desesperança focado no horizonte que não prometia melhoras.

Aquele momento nostálgico foi interrompido por um grito coletivo. O local onde estavam os pequenos que alcançaram aquele morro  havia precipitado. A terra em baixo de seus pés havia desmanchado e toda aquela parte desmoronado. A correnteza os levou e todos, de forma egoísta, tentavam se apoiar uns nos outros para não se afogarem. Desta forma acabaram ajudando um ao outro a morrer mais rápido.

As horas se passaram e água da correnteza começava a tocar os pés de Agathi. Ele não tinha forças e ficou deslumbrado com a sensação de vida que havia na água correndo em seus pés. Lembrou-se de um banho no rio, de sua família e também de sua primeira pesca. Mas os trovões não o deixam pensar nas conversas e tudo o que podia fazer era lembrar-se das imagens que tinha daqueles bons momentos.

A pedra na qual estava começou a deslizar.. e após alguns minutos caiu dentro d´agua. Morria ali o ultimo humano da terra fora da Arca. Agathi.

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